Irei tratar, neste texto, das questões de definir e clarear o entendimento que podemos ter daquilo que é chamado "místico" por muitos. Isso se fará por meio de um resgate e exploração do conceito. Para, no entanto, chegarmos à isso é necessário que façamos, também, uma investigação acerca do que podemos chamar de "natureza", buscando também maior clareza em seu significado. A razão para isso se revelará no decorrer do texto, por ora basta dizer que é inconcebível tratar uma coisa sem a outra.

Quando falamos da Natureza, e, por consequência, daquilo que é natural, temos muito facilmente considerações diversas acerca do objeto tratado. Mentes mais propensas à "poesia" podem conceber a Natureza como sendo o grade corpo de plantas e seres vivos que cercam e preenchem o mundo, e, talvez tolamente, conceber à Natureza certas feições antropomórficas ao chama-la de "acolhedora Mãe Natureza", isso se vê também em crentes de outros sistemas quando estes dão qualidades humanas à seus deuses de aspecto "sobre-humano", muitos "absolutos" e "incognoscíveis". Outros, de pretensões mais materialistas, creriam que Natureza é tudo àquilo que é material e não-humano no mundo. Ambas as noções, embora divirjam em fim, observam de fato a mesma coisa: a exterioridade daquilo que se julga ser a Natureza.

O Oxford Dictionaries traz duas definições que considero bastante interessantes para nossa investigação (traduzido do inglês para o português)[1]:


1. Os fenômenos no mundo físico em coletivo, incluindo plantas, animais, a paisagem e outros elementos e fatores da terra, em oposição à humanos e criações humanas.
- A força física que se supõe causar e regular os fenômenos do mundo. 
2. As características, caráter ou qualidades básicas e/ou inerentes de algo.
- As qualidades ou caráter inerente ou essencial de uma pessoa ou animal
- As qualidades a qual nascemos ou herdamos que influenciam ou determinam a personalidade. Normalmente contrastada com a "nutrição".

No primeiro termo de definição temos a descrição superficial e "material" da Natureza como sendo o conjunto de "coisas" que existem no mundo além do homem e das suas criações diretas. Não gosto muito dessa concepção que exclui a humanidade como "parte da Natureza" pois isso nos nega como indivíduos naturais, oriundos da natureza. A especificação do termo segue com a ideia de Natureza como a força "física" que é responsável por causar e regular os fenômenos(os eventos) do mundo. Isso se torna fácil de entender quando força "física" é compreendida como "física" tal como a ciência. Podemos observar, para exemplos de clarificação, as ciências ditas "naturais" como biologia, física e química, como exemplo claro dessa ideia. Considerando isso, no entanto, me sinto forçado a pensar sobre o primeiro termo e sobre nossa condição enquanto humanos. Ora, as leis físicas se aplicam sobre nós, tal como os processos químicos e biológicos, não havendo, assim, demasiada distinção de nós, humanos, do resto das coisas que permeiam o mundo. Somos "regidos" pela natureza tal como todos os outros animais. No entanto, alguém poderia pensar, ainda há a questão das nossas criações humanas, isso nos separa dos animais. Ora, para de fato isso acontecer seria necessário que animais não "criassem". Podemos conceber, de forma clara, o exemplo de uma casa construída por um humano como sendo um exemplo de "criação" humana, a qual poderia ser tomada como uma obra não-natural. Mas então o que seria o ninho do pássaro? Embora possamos dar mais valor à um que à outro não acredito ser ótimo levarmos nossa preferência pessoal como valor de desempate nessa questão. E nosso possível favoritismo poderia nos levar à considerar que a casa humana é de uma complexidade muito maior em comparação ao ninho, mas também acredito que isso é falso. Ambas, afinal, possuem níveis de complexidade adequados e a separação de uma e outra se torna, então, algo de natureza arbitrária e, portanto, sobre isso nada podemos afirmar, com certeza e verdade. Ainda na esfera de "criação" é necessário apontarmos a noção de algo intocado pelo homem enquanto algo natural. Tal como no exemplo da casa e do ninho também não podemos divergir uma alteração do homem ao meio-ambiente daquela feita por outro animal sem que caiamos em uma dicotomia resolúvel somente por, novamente, uma elaboração arbitrária. Se, e muitos poderão pensar em algo assim, houver algo que seja objecionável quanto ao ser humano enquanto animal e parte da Natureza esta seria o fato dele ter expandido seus limites, influências e poder, sobre o resto do meio natural, mas isso, ainda assim, não é o suficiente para separa-lo da Natureza e do controle (da "regência") desta sobre ele.

No segundo termo temos uma definição que considero de demasiado valor e interesse para nós: a ideia de Natureza como sendo o conjunto de elementos intrínsecos de determinada coisa. Você provavelmente já usou, muitas vezes, Natureza nesse sentido ("Eu sou irritado por natureza", "minha natureza é individualista", "é natural ao pensamento desse sistema a ideia de...", etc). Temos a ideia de "caráter" não só como "caráter humano" ("fulano é bem correto mas é meio preguiçoso...", etc.) mas também como "aspecto" ("a pedra é dura", "a água é molhada...", etc.) pertinente à determinada coisa. É importante notar que aqui podemos falar, muitas vezes, de aspectos que são derivados de crenças humanas, não sendo factuais e portanto não sendo aspectos da Natureza enquanto àquilo que afirmam, mas sim enquanto existência[2]. Além disso a noção de algo que é prévio ao indivíduo, que jaz no âmago do mesmo, e é determinante em sua "personalidade" é, também, algo de fascinante especialmente quando posto em contraponto à ideia de "nutrição", que nesse contexto tem o sentido de desenvolvimento, crescimento.

Considerando que ambas as definições tratam da mesma coisa podemos entender, com certa facilidade, o conjunto das definições de Natureza nos termos 2 com a expansão dos termos 1. Natureza, então, seria o conjunto de aspectos inerentes e essenciais de "algo" que, então, é responsável por causar e regular os fenômenos no mundo. Ora, o que seria esse "algo" então? Já que prefiro evitar falar da "realidade" e do que é "real" posso inferir somente, mas sem medo de equivocar-me, que a resposta para o que seria esse "algo" seria o Universo. Temos também a ideia de Natureza como qualidades com as quais nascemos e que influenciam em nossa "personalidade" (isso implica nas disposições[3]) e posto isso no contexto anterior podemos chegar à noção de uma "personalidade"(que deve ser entendida como "feição" ou "aspectos") para o Universo. Já que se supõe que a Natureza controla e rege os fenômenos no mundo e essa Natureza aqui tratada é a Natureza do Universo temos que o Universo orquestra seus movimentos de acordo com a volição que é natural à sua gênese e seu âmago, de acordo com a sua "personalidade inerente", tal como o indivíduo age de acordo com as suas disposições (sua natureza, sua personalidade, seu Espirito, etc). As Leis do Universo, então, são a expressão da Natureza do Universo e das "disposições" da mesma. Como somos subordinados à ele, o Universo, somos, também, regidos por suas volições, por suas Leis, tal como, e esse exemplo é expresso em muitos sistemas de crença, um filho, pois somos oriundos dele, de um pai (o Universo e de sua Natureza) que segue às suas ordens (suas Leis).

Aproveitarei o momento para notar que agora fica claro como os crentes e os poetas se deixam iludir pela ideia de uma Natureza pessoal e antropomórfica. Isso é fruto, creio, de um certo sentimentalismo romântico e da falta de compreensão dos mesmos acerca da crença e conceito por eles carregada e exposta.

Assim sendo temos agora uma maior compreensão acerca do que seria a Natureza: ela é a coleção de aspectos intrínsecos e essenciais contidos por determinada coisa não sendo, portanto, uma coisa em si. Ou seja, ela é sempre pertinente à algo (a Natureza da pedra, a Natureza da água, a Natureza do homem, a Natureza do Universo, etc). Devemos notar aqui, então, que essa ideia muitas vezes se confunde na mente dos distraídos e descuidados pois muitas vezes estes se referem à Natureza somente e acham que fazem valer algum sentido, no entanto fica claro, pelo emprego que fazem do termo, que se referem, quando falam de uma Natureza descompanhada, una, à Natureza do Universo. Podemos citar como sendo da nossa Natureza, enquanto humanos, nossas características e aspectos, assim como podemos também fazer isso acerca do Universo. E enquanto podemos falar que nós, humanos, temos, por natureza, cabelo, podemos também citar as coisas que pertencem no Universo como sendo parte de sua Natureza, tal como os animais, as plantas, as paisagens, de forma que agora, finalmente, temos um quadro completo acerca daquilo que podemos chamar de Natureza, tanto enquanto conceito como também enquanto noção aplicada ao Universo.

A partir dessa compreensão temos, então, que refletir sobre a implicação do sentido daquilo que é dito "sobrenatural". Sobrenatural implica em algo que está acima da natureza, sobre a natureza, de forma à fugir de suas "leis". No entanto sabemos agora que as Leis são a Natureza, e essas Leis ocorrem no Universo. Assim sendo temos implicações diversas para a situação cá presente. Se o Sobrenatural vai além da Natureza do Universo, e de suas Leis, então isso significa que ele, necessariamente, vai além do próprio Universo, não pertencendo à este. Assim sendo ele há de pertencer a um Universo outro. Ainda assim, neste "outro Universo" a noção de Natureza se aplicaria, pois Natureza da descrição dos elementos que compõem a existência de tal coisa, assim sendo, se não houvesse Natureza não haveria nada que compusesse a coisa e, portanto, a coisa não existiria. Com isso quero dizer: mesmo que o sobrenatural venha a existir em algum tipo de "outro Universo" este outro universo ainda assim teria, necessariamente, de possuir uma Natureza e, portanto, mesmo o "sobrenatural" seria "natural" em seu "plano nativo de existência", o lugar onde se origina. Para, então, este dito "sobrenatural" se manifestar no nosso Universo, supondo, para fins de exposição, que este exista e que exista em um outro Universo, ele ainda assim precisaria se adequar, de uma forma ou de outra, às Leis do Universo onde este se apresenta. Se essa adequação não for possível também não será possível a existência deste dito "sobrenatural" em um Universo incompatível com o mesmo. Para exemplificarmos isso pensemos em um videocassete e um DVD. É impossível que você consiga tocar uma fita de VHS em um DVD e vice-versa, os "tocadores" (os Universos) recebem determinado formato (tem determinadas Leis) e para que se consiga tocar tal fita, ou tal dvd, no outro tocador é necessário que se adapte, por exemplo, o filme (o objeto "sobrenatural") da fita (que representa o "formato", ou seja, o conjunto de Leis de tal Universo) para um formato digital adequado ao DVD. Outro exemplo seria a de um corpo d'água (o objeto) que se adéqua à forma (conjunto de Leis, a Natureza) de um determinado recipiente, um jarro (Universo). A água se adapta ao formato do jarro tal como o objeto se adéqua às Leis do Universo em que se encontra. Quando a água é levada à outro recipiente, como, por exemplo, um copo (outro Universo), ele se adequará ao novo formato (novo conjunto de Leis, nova Natureza). Se houver alguma incapacidade deste líquido se adequar, ele pode, por exemplo, estar congelado e por conta de seu formato ele não adentra o novo recipiente, não haverá, então, interação com o novo recipiente. Ainda temos a possibilidade de se o volume de água do jarro for maior do que o volume previsto pelo copo haver transbordo do líquido para que este se adeque ao recipiente e à sua forma (podemos entender isso da seguinte forma: um indivíduo, em seu plano de origem, possui certas qualidades. Ao adentrar outro plano, onde essas qualidades não são previstas, não fazem parte da Natureza do plano, o indivíduo perde essas qualidades para se adequar). Não se esqueçam que estamos lidando com suposições teoréticas aqui, a possibilidade da existência de outro Universo com outras Leis é incomprovada e não devemos toma-la como certa. Além do mais ainda há a questão de como se dá a interação entre esses dois Universos, que é, também, especulativa e incomprovada.

Assim temos que chamar algo de "sobrenatural" é um termo vazio, já que o "sobrenatural" sempre será adequado à Natureza de onde quer que esteja. Se ele pertence e repousa em determinado Universo ele está adequado às leis deste Universo, se este, de alguma forma, se manifesta em outro Universo esta manifestação, este fenômeno, será adequado, necessariamente, às Leis do Universo almejado, que ele pretende "interagir", afetar. Portanto digo que "sobrenatural" é um termo desprovido de sentido e de função, de forma que deve ser abolido. O mesmo pode ser dito de termos semelhantes como, por exemplo, "meta-física"[4].

No entanto a questão daquilo que foge à compreensão do que entendemos acerca da Natureza do Universo persiste e ainda de fato há, coisa que não posso negar, alegações, suposições, especulações e ponderações acerca de certos fenômenos naturais mas que ainda não são compreendidos, são desconhecidos. Muitas pessoas dessa área recorrem ao termo "místico" para se referirem às coisas de Natureza "sublime" (ou sutil) do Universo. Com "sublime" (ou sutil) estes querem dizer (quer saibam ou não) que isso, aquilo que é "místico", é referente aos aspectos menos evidentes, ainda ocultos e desconhecidos, da Natureza de determinada coisa. A romantização em cima da noção do "místico" é, novamente, fruto de mentes mais propensas à poesia, não sendo, necessariamente, condizente com a realidade.

A grande questão acerca do que é chamado de "místico" é o fato dele ser uma faceta, uma parcela, de algo que é familiar[5], o Universo. A coisa, o Universo, é familiar, próxima, palpável, reconhecível, mas a Natureza do Universo, os aspectos intrínsecos e essenciais do Universo, não são por inteiro conhecidos. É à essa parcela da Natureza que é desconhecida que se refere o termo "místico".


[1] - Oxford Dictionaries - Nature (em inglês)
[2] - LEMOS, Hugo, Da Crença e da Verdade
[3] - LEMOS, Hugo, Das Crenças: O Espírito
[4] - CARNAP, Rudolf, A superação da metafísica pela análise lógica da linguagem, tradução de William Steinle, do original "The Elimination of Metaphysics Through Logical Analysis of Language",
[5] - LEMOS, Hugo, Meditações III - O problema da "familiaridade"

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